Historiadora problematiza
quarta-feira, 21 de junho de 2017
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017
“Estrelas Além do Tempo” e o que pessoas brancas podem aprender com ele
No último sábado, tive
o privilégio de assistir “Estrelas além do tempo” ou “Hidden figures”, “Figuras escondidas” em português. No cinema onde estivemos, na
Gávea, mesmo chegando com antecedência, os ingressos já estavam esgotados. Saímos
de lá e fomos para outro, na Lagoa e dessa vez tivemos mais sorte,
embora não tivessem nos restado os melhores lugares, pois o espaço já estava
quase lotado...
Entramos com a sala
já escura, não deu para ver nesse momento o público, mas notamos a presença de
muitas crianças, o que foi muito interessante... Mas, falarei sobre o público e
minha experiência no lugar mais para frente. A intenção aqui é analisar
algumas cenas do filme a fim de aproveitar o que podemos depreender delas.
O período histórico
datava do início dos anos de 1960, entre 1961 e 1962 para ser mais precisa,
momento de competição entre Rússia e EUA no que se convencionou
chamar de “corrida espacial”. O longa deixa clara essa disputa, bem como a
segregação racial institucionalizada nos Estados Unidos.
Katherine Johnson
(Taraji Henson), Dorothy Vaughn (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle
Monáe) são as personagens principais. Eram “mulheres computadores”,
responsáveis pelos cálculos. O filme cria toda a sua narrativa em torno delas e
de suas histórias de vida, o protagonismo é delas, o que foi bem prazeroso e gratificante
assistir.
Meritocracia?
A luta por reconhecimento e valorização de histórias coletivas
O
filme por focar na narrativa dessas três personagens REAIS, pode abrir margem para
a ideia de que elas só tiveram sucesso em suas carreiras porque lutaram e se esforçaram. Essa concepção acaba por cair no discurso
meritocrático daquele que só consegue alcançar algum objetivo se batalhar muito
para isso. Também pode cair no discurso de que nos dias de hoje, pessoas negras já não sofrem com o racismo e se reclamam por direitos, na verdade estão “se fazendo de vítima”, pois se não
lutarem/se esforçarem não vão atingir suas metas.
Se
sairmos dessa superfície e prestarmos um pouco de atenção, essa não é a mensagem que o filme quer
passar. É importante frisar que junto das lutas que as personagens trilhavam,
elas tiveram condições que propiciaram seus progressos
profissionais. Logo na primeira cena, por exemplo, Katherine ainda criança está
na escola resolvendo uma equação e explicando uma teoria. Sua professora
aconselha seus pais a investirem na sua educação, vide tamanho potencial que
ela apresenta. Com o investimento nos seus estudos, com os pais e a comunidade
escolar apoiando e estimulando, a personagem principal do longa encontrou um ambiente favorável para o
desenvolvimento de suas habilidades intelectuais.
Katherine, ainda criança, resolvendo uma equação no quadro
da escola.
(Fonte da imagem: Daniela Colaci)
Na vida adulta, Katherine já viúva, mora com a mãe e as três filhas. Enquanto ela trabalha, sua mãe dá respaldo ao cuidar das filhas. Desde a
infância, portanto, o respaldo familiar na trajetória de Katherine foi fundamental para que seu investimento e sucesso profissional fossem possíveis.
(Fonte da imagem: Radio Arabella)
O
suporte familiar também é bastante notável na trajetória de Mary Jackson, que lutou
para tornar-se a primeira mulher negra engenheira da NASA. Em várias cenas,
Mary chega em casa e encontra o marido cuidando do casal de filhos. O apoio do
marido também se torna fundamental para que ela possa progredir
profissionalmente. Em uma das cenas, o marido de Mary a presenteia com
lapiseiras e a ensina como usá-las. Além do gesto que torna evidente o seu apoio
e incentivo, o marido de Mary tem falas de estímulo a seus estudos e progresso
profissional.
(Fonte da imagem: IG Gente)
Portanto,
o apoio familiar fica bastante evidente nas trajetórias dessas personagens. O
respaldo escolar, familiar e das três enquanto amigas que se fortalecem em união,
as fazem fortes na luta contra o racismo institucionalizado, o ambiente
repressor de seus empregos e dos lugares pelos quais circulam. São mulheres que
juntas se fazem fortes, com o apoio dos seus círculos de amizade e familiar. Essa
foi a grande mensagem.
Tendo isso em mente, é importante
que não se entenda aquelas mulheres como "exceções à regra" porque única e exclusivamente
se esforçaram para conseguir sucesso profissional. Elas eram mulheres que se
faziam fortes e seguras de seus potenciais em condições que favoreceram o investimento e desenvolvimento de suas atividades intelectuais. Eram mulheres que encontraram condições que
as incentivaram e que as respaldaram coletivamente. Com apoio escolar, familiar
e de amizade, aquelas mulheres se fortaleciam em si mesmas naquele contexto
histórico de segregação racial institucionalizada nos Estados Unidos.
Mary,
Katherine e Dorothy: Momentos de união e apoio mútuo.
(Fonte da imagem: Adoro Cinema)
(Fonte da imagem: Adoro Cinema)
Katherine,
Dorothy e Mary com @s filh@s na missa da igreja, onde são enaltecidas enquanto
mulheres importantes para o desenvolvimento espacial da NASA. Mulheres que
garantem representatividade na sua comunidade.
(Fonte da imagem: Papo de cinema)
A obra deixa claro e evidente que quando se tem condições favoráveis, com
estrutura familiar e educacional, as oportunidades de prosperidade pessoal e
profissional tornam-se reais. Do mesmo modo, quando pessoas não têm
oportunidades de estudo, uma família estruturada e não há qualquer suporte, é
praticamente impossível ter o apoio necessário que torne realizável o investimento em
suas próprias vidas.
Sendo assim, é fundamental que não se pense apenas pelo viés do esforço individual dessas mulheres, ao contrário, o coletivo está presente em todo momento. É na união, na amizade e na coletividade que elas se fazem fortes para lutar na sociedade – machista e racista – em que viveram.
Sendo assim, é fundamental que não se pense apenas pelo viés do esforço individual dessas mulheres, ao contrário, o coletivo está presente em todo momento. É na união, na amizade e na coletividade que elas se fazem fortes para lutar na sociedade – machista e racista – em que viveram.
No
ambiente de trabalho de Katherine, Mary e Dorothy, a união entre as mulheres
negras não se restringia às três personagens. O coletivo feminino e negro do
ambiente fica mais evidente no protagonismo de Dorothy, supervisora
de trabalho de um grupo de mulheres negras. Mais que lutar por sua promoção ao longo
da trama, Dorothy lutou para que não somente ela, mas que toda a sua equipe
fosse promovida. Mais um momento de luta, de união, de amizade e de laços de
solidariedade entre as mulheres negras.
(Fonte da imagem: Plano Crítico)
Momento
em que Dorothy e sua equipe foram promovidas e em marcha caminham para sua
nova sala.
Essas mulheres estavam unidas tanto pela dor do machismo e do racismo
que sofriam diariamente, quanto pela amizade e pelos laços de solidariedade que se fortaleciam nas
conversas, nas idas e voltas do trabalho e nos momentos de lazer e diversão.
Mary,
Katherine e Dorothy reforçam seus laços de amizade e união em momentos de
lazer.
(Fonte da imagem: Cinemação)
(Fonte da imagem: Cinemação)
“Toda vez em que estamos próximas a conquistar algo, eles mudam a linha de chegada”: A luta pelo reconhecimento contra o machismo e o racismo
O ambiente de trabalho que essas mulheres enfrentavam era assustadoramente agressivo. Não “apenas” pela materialização da segregação racial, mas pelo ambiente extremamente masculino e branco. Em diversas cenas, mesmo que as pessoas não as agrediam com palavras, seus olhares as julgavam e diziam que ali não eram bem-vindas.
A luta para (re)existir se materializava, por exemplo, nas várias cenas em que Katherine digitava como autor do trabalho – que ela mesma executava – o nome de Paul, engenheiro-chefe, e com o passar das cenas, ela vai acrescentando seu nome, desenvolvendo o seu poder de confiança com coragem para driblar e transgredir as regras daquele tempo.
Ambiente extremamente repressor e masculino.
Katherine, a única mulher negra entre eles.
(Fonte da imagem: Cosmonerd)
Mary Jackson, do mesmo modo, ao ser a primeira mulher negra a tornar-se engenheira aeroespacial da NASA, além de enfrentar o ambiente hostil também no seu primeiro dia de aula, desenvolveu todo um discurso com base na ideia e a importância de ser “a primeira” para conseguir uma vaga na escola de engenharia. Mary discursa sobre a importância de se fazer história e de ser a pioneira. Apesar do contexto de segregação racial dos anos de 1960 nos EUA, essa questão ainda é muito atual no Brasil de 2017. A mulher negra ainda é a primeira – e muitas vezes a única – em diversos ambientes sociais e profissionais.
Mary,
a primeira mulher negra em aula na turma de engenharia.
Ambiente intimidador, branco e masculino.
(Fonte da imagem: Guia da Semana)
Ambiente intimidador, branco e masculino.
(Fonte da imagem: Guia da Semana)
O
racismo velado – discutirei melhor adiante – fica claro em vários momentos, às
vezes de forma sutil, outros nem tanto. É o exemplo da cena entre Dorothy e
Vivian Michael (Kirsten Dunst), na qual, em conversa, Vivian diz que
não tem nada contra negros. Dorothy rebate dizendo que é possível que ela
acredite no que dizia (embora não fosse verdade).
Vivian Michael, chefe de Dorothy.
(Fonte da imagem: Minha Visão do Cinema)
(Fonte da imagem: Minha Visão do Cinema)
Branco aliado ou branco salvador?
Al Harrison (Kevin Costner) é o chefe da equipe responsável por levar o homem à lua e também chefe de Katherine. Seu papel na trama, no que tange o engajamento antirracista, ganha um caráter dúbio entre o branco aliado e o branco “salvador” que toma as rédeas da situação como se as mulheres negras não fossem capazes delas próprias lutarem por melhores condições e direitos.
A cena na qual Al Harrison destrói a golpes de marreta a placa que designava o banheiro feminino para mulheres negras, deixa isso bem claro. Apesar de Katherine ter tido força e protagonismo ao expor com indignação o motivo pelo qual saía do trabalho e demorava para voltar, foi o seu chefe que derrubou a placa que materializava a segregação racial nos banheiros, decretando que a partir daquele momento, mulheres negras e brancas usariam qualquer banheiro da NASA.
Vale notar que Al Harrison fez isso mais por não querer que sua funcionária ficasse fora por muito tempo e ausente quando ele precisasse do que pela questão racial em si. Harrison está preocupado com o bom caminhar dos projetos espaciais e em vencer a corrida espacial contra os russos. A questão racial para ele não era o foco, nem a luta dele.
Por outro lado, seu personagem é de suma importância para pensarmos que pessoas brancas também tem papel relevante na luta contra o racismo. Al Harrison com sua influência na NASA, por exemplo, tinha o poder de alterar as regras e mesmo que indiretamente, chamar atenção para o racismo que aquelas mulheres sofriam perante aos demais brancos. No entanto, a sensação que passa é a de que a NASA tem outros propósitos e objetivos “mais importantes” do que se importar com a cor da pele daquelas mulheres.
Al
Harrison, chefe da equipe na qual Katherine fazia parte.
(Fonte da imagem: Adoro Cinema)
(Fonte da imagem: Adoro Cinema)
Contudo, Harrison é importante para que aquelas pessoas refletissem sobre o racismo. Ao derrubar a placa do banheiro feminino diz: “todos urinamos da mesma cor”, o que abre caminho para a reflexão, mesmo que momentânea. É interessante pensar que apesar de Harrison ser uma espécie de “mediador” nesse conflito racial, o importante é que o foco não seja ele – homem branco – no que diz respeito ao que sente em relação ao racismo.
Eu, enquanto mulher e intelectual branca, por exemplo, ao escrever esse texto e ao pesquisar sobre culturas negras, não falo de mim. Então, não importa como me sinto em relação ao racismo porque é algo que nunca vou sentir, simplesmente porque não sofro e nunca vou sofrer com ele. Mas, mesmo tendo negrxs na família? Sim! Mesmo que você namore uma pessoa negra, tenha amigxs negrxs, sua família seja negra. Se você é branco ou branca, não importa como você se sente em relação ao racismo.
Em outra cena na qual Katherine consegue participar de uma reunião importante, fechada para mulheres (ou mulheres negras?), Al Harrison foi importante porque com seu poder e voz, pôde interceder pela presença dela dentro daquele grupo de homens brancos. Mas, diferente da cena da quebra da placa do banheiro, naquele momento Katherine tem voz ativa. Harrison entrega o giz a ela – num gesto simbólico de abrir espaço de participação ativa – e é ela quem demonstra os cálculos, é ela quem explica o que se deve fazer naquele grupo de homens brancos, é ela quem tem o protagonismo.
Katherine
em reunião onde era proibida a participação de mulheres.
(Fonte da imagem: Filmow)
(Fonte da imagem: Filmow)
“Sim, há mulheres que fazem coisas importantes na NASA. E não é porque usamos saias e sim porque usamos óculos!”: Questão feminista e questão racial
A questão feminista e racial muitas vezes se confundem. Ou melhor, a questão da mulher muitas vezes “disfarça” a racial. Numa das falas em que Katherine responde ao seu pretendente – que naquele momento a subjugou – ela diz que sim, aceitam mulheres na NASA, ou seja, a questão “mulher” ganha mais força que a questão racial ou a questão racial fica subentendida, como se ela na verdade respondesse: “Sim, aceitam mulheres (negras) na NASA.
Eu, enquanto mulher branca, me senti representada quando ela disse apenas “mulheres”. Mas não sei se as mulheres negras se sentiram ou se sentiriam totalmente representadas apenas com a afirmação “mulheres”. É um detalhe que vale atentar para não passar despercebido, uma vez que nossa sociedade, que ainda crê numa “democracia racial”, muitas vezes esconde ou disfarça a questão racial e não a encara como um problema.
Outro momento em que é possível notar que a questão “mulher” abafa a racial, está quando um policial desce de seu veículo ao ver que Katherine, Dorothy e Mary estavam paradas diante de seu carro quebrado. O receio delas era que o policial as incriminassem não por estarem ali paradas consertando seu carro, mas porque eram mulheres negras e por serem negras, abriria um precedente para aquele policial branco as incriminar. É sutil, mas é de suma importância a problematização desses detalhes e dessas mensagens nas entrelinhas.
Quando elas se apresentaram para o policial como funcionárias da NASA, Dorothy logo o respondeu com algo como: “existem muitas mulheres trabalhando no programa espacial”, mas na verdade ela dizia: “existem muitas mulheres NEGRAS trabalhando no programa espacial”. Sutil, reforço, mas muito importante para pensarmos, lembrarmos e nunca esquecermos que a questão racismo não deve ficar subentendida. O tema racismo deve ser encarado como o problema que de fato é nos dias atuais e não apenas – tragicamente – no contexto de segregação racial institucionalizada nos Estados Unidos daqueles tempos.
(Fonte
da imagem: Araraquara News)
Tendo
isso em mente, é importante não esquecer que as personagens sofrem o que sofrem
e vivem muitas das mazelas daquele contexto não apenas por serem mulheres, mas
por serem mulheres negras. Esconder ou camuflar a questão racial coloca o
problema do racismo – que pessoas negras vivem diariamente – para debaixo do
tapete enquanto outras pautas e questões são levantadas, como o machismo, a
falta de recurso financeiro, sem levar em consideração, ou dando menos atenção,
ao fato do racismo ser também um problema que tem e deve ser encarado e discutido.
A
questão racismo fica mais evidente que a questão mulher quando analisamos os
diálogos entre as personagens principais e as mulheres brancas na trama.
Podemos pegar como exemplo a cena entre Vivian Michael e Dorothy que comentei acima. Outras, mais explícitas, como a fala de uma mulher branca para Katherine:
“Você é a única negra aqui, não me envergonhe!”. Fica claro que a
questão a ser pensada e problematizada vai muito além do machismo, envolve
racismo e isso precisa ser discutido enquanto problema que é.
Colocando
ainda mais o dedo na ferida, não falar de racismo dentro do movimento feminista, por exemplo, é mais uma forma de abafar o racismo que as mulheres negras sofrem. A não
compreensão e o descontentamento de algumas pessoas ao verem a “Globeleza”
vestida na vinheta do carnaval 2017 é um pequeno exemplo do reflexo disso.
O
corpo negro no imaginário social ainda carrega vários estereótipos que
objetifica, erotiza e desqualifica a mulher negra. A imagem da mulher brasileira no
exterior é daquela que é “fogosa”, que “gosta de sexo”. Já pararam pra imaginar
sobre como é esse imaginário em torno do corpo feminino negro? Essa é apenas
uma questão-exemplo que lembra o porquê não se deve perder de vista, ou colocar em segundo plano, o racismo enquanto problema social.
Falas empoderadas e reações da plateia
Ao longo de algumas falas empoderadas, as reações da plateia eram diversas. Muitas vezes, diante das falas de poder em resposta ao subjugar de alguns homens, a reação era de silêncio, de “climão” mesmo. Reação análoga a quando isso acontece na vida real.
No entanto, os silêncios eram diferentes, se assim posso descrever. Em cena na qual Katherine desabafa o sacrifício que vivia em ter que ir para outro prédio apenas para usar o banheiro destinado a mulheres negras, a plateia emudeceu de um jeito diferente. Foi a mesma reação da sala na qual Katherine estava rodeada de brancos. Foi uma espécie de tapa na cara. Tanto na deles, quanto na nossa. Uma cena forte, importante, de fala, de desabafo, de protagonismo!
Outras falas vinham acompanhadas de uma trilha sonora que dava ainda mais ênfase ao que era dito. Isso pode abrir margem para interpretações que entendam isso como “supervalorizar” o que elas estavam dizendo e, consequentemente, “supervalorizar” o papel delas. Digo isso porque ainda é muito atual e real o fato de que quando uma mulher tem o espaço de fala ou um momento de protagonismo, é comum ouvir frases, conversas e interpretações que de alguma maneira tentam desqualificar a posição ou a fala dela. Afirmo isso enquanto mulher e intelectual branca, imagina quando uma mulher negra, intelectual, forte, dona de si e de sua história tem o poder de fala e seu protagonismo defendido em suas próprias ações? Isso pode incomodar muito mais, como incomoda muita gente não apenas na ficção.
Em outras falas e cenas, a plateia ria sem um motivo aparente. Nas cenas em que Katherine corria até outro prédio para usar o banheiro de mulheres negras, algumas pessoas riram. Essas cenas em que a atriz corria, indo e voltando, todos os dias para usar o banheiro se repetiu diversas vezes e por várias vezes também as pessoas riram. (?)
Na cena em que Katherine pede para participar da reunião permitida apenas para homens, sua fala é mais um dos momentos nos quais ela é segura de si, fala diretamente com seu chefe e o intima a convencer os demais membros de que a presença dela era importante. Ele diz que não é permitida a entrada de mulheres (veja, mais uma vez a questão mulher abafa a questão racial). E ela responde: “o senhor é o chefe, basta agir como tal.” A reação da plateia foi rir. No momento não entendi o porquê, mas chegando em casa e procurando pelo nome original do filme, talvez essa reação explicasse o motivo pelo qual ele não foi traduzido literalmente.
“Estrelas além do tempo” foi o título em português escolhido para “Hidden figures” (Figuras escondidas). O título em português é certamente mais poético e menos perturbador que o nome original. Esse, por sua vez, ajuda a problematizar o porquê dessas figuras ainda continuarem escondidas, apesar de toda a sua importância no contexto da corrida espacial e no contexto de racismo institucionalizado nos Estados Unidos. O nome mais “romântico”, de alguma maneira, ajuda a esconder o problema racial numa sociedade que ainda enfrenta diversas dificuldades para enxergar o racismo como um problema.
As risadas para a fala de Katherine quando enfrenta seu chefe, pode traduzir a comicidade da plateia em ver uma mulher negra tomando as rédeas da situação, mesmo já caminhando para o final do filme quando várias demonstrações de poder já tinham sido exercidas por ela e suas amigas.
(Fonte da imagem: No Spoiler Reviewz)
Já para a parte final, Paul, um dos funcionários com quem Katherine
trabalhava, oferece uma caneca de café como num gesto simbólico de perdão e
“cura” de todo o racismo e machismo que praticou contra Katherine. Esse
desfecho da relação entre Katherine e Paul me soou muito como um “final feliz”,
como se tudo ficasse resolvido, o que não é verossímil.
O mesmo senti na cena em que Katherine foi dispensada do
grupo de Al Harrison. Nela, Katherine ganha um colar de pérolas como em
agradecimento a seus trabalhos enquanto esteve naquele grupo. Mas, quem lhe
presenteia é uma mulher branca que, inclusive, a parabeniza por seu trabalho. Depois disso,
Katherine sai da sala e ninguém nota. Simplesmente lhe deram um colar e ela
saiu, como se isso redimisse todo o machismo e racismo que sofreu. Mas, para
alguns, esse pode ter sido um “final feliz” no relacionamento de Katherine com aqueles
funcionários e aí fica “tudo bem”. Detalhes que também valem a problematização
e a atenção das mensagens nas entrelinhas.
Ao final do filme e no acender das luzes, finalmente pude olhar para trás e
enxergar a plateia. Muitas crianças e um mar de pessoas brancas com suas
pipocas gigantes. Vale lembrar que estávamos na Lagoa, área nobre do Rio de
Janeiro, pois aqui na “quebrada” esse filme não estava em cartaz. Fiquei meio
decepcionada, confesso, apesar de não surpresa em se tratando de onde
estávamos.
O filme acabou sob aplausos. Na pressa de sairem, alguns perderam a
parte final na qual mostra as personagens REAIS daquele longa (se você ainda
não viu, não saia quando as luzes acenderem). O filme tinha terminado, enfim...
Fui ao banheiro quando ainda vazio. Ao sair, vi várias mulheres (brancas) entrando e uma mulher (negra) uniformizada, com uma vassoura de limpeza. Ela me disse: “Senhora, o papel fica atrás do espelho, a máquina tá quebrada.” Sorri, agradeci, dei boa noite e desejei que tivesse um bom trabalho. Ela sorriu de volta enquanto várias outras mulheres (brancas) entravam e saíam como se aquela mulher negra fosse invisível.
Fiquei pensando o quanto aquelas duas horas de filme pode ter sido inútil para algumas pessoas. O quanto pode ser difícil para alguns notarem que o filme era mais realidade do que ficção, mesmo as pessoas sabendo que ele é baseado em histórias reais, mesmo sabendo que aquelas mulheres existiram e existem na vida real...
Realmente, “Figuras escondidas” – como muitas ainda continuam – seria mais crítico e problematizador, porém, “Estrelas além do tempo” também sugere e comprova que aqueles obstáculos e lutas travadas nos EUA dos anos de 1960, no contexto de segregação racial institucionalizada, ainda ultrapassa os tempos quando ainda são tão atuais num Brasil de 2017 que crê numa “democracia racial”.
Fui ao banheiro quando ainda vazio. Ao sair, vi várias mulheres (brancas) entrando e uma mulher (negra) uniformizada, com uma vassoura de limpeza. Ela me disse: “Senhora, o papel fica atrás do espelho, a máquina tá quebrada.” Sorri, agradeci, dei boa noite e desejei que tivesse um bom trabalho. Ela sorriu de volta enquanto várias outras mulheres (brancas) entravam e saíam como se aquela mulher negra fosse invisível.
Fiquei pensando o quanto aquelas duas horas de filme pode ter sido inútil para algumas pessoas. O quanto pode ser difícil para alguns notarem que o filme era mais realidade do que ficção, mesmo as pessoas sabendo que ele é baseado em histórias reais, mesmo sabendo que aquelas mulheres existiram e existem na vida real...
Realmente, “Figuras escondidas” – como muitas ainda continuam – seria mais crítico e problematizador, porém, “Estrelas além do tempo” também sugere e comprova que aqueles obstáculos e lutas travadas nos EUA dos anos de 1960, no contexto de segregação racial institucionalizada, ainda ultrapassa os tempos quando ainda são tão atuais num Brasil de 2017 que crê numa “democracia racial”.
O longa nos faz pensar e nos ensina muito sobre diversas questões infelizmente ainda muito presentes. Faz-nos pensar e refletir que o Brasil desses tempos não está muito distante dos Estados Unidos da segregação racial institucionalizada. É importante refletir, sobretudo enquanto pessoas brancas, que o racismo precisa ser encarado como um problema estrutural e real na nossa sociedade. Não pode ser escamoteado por outras questões que fazem desse problema crônico ficar em “segundo plano”.
Como vimos, além de abrir margem para diversas discussões, também é um filme gostoso de assistir, de sentimento, que emociona, que representa e que inspira! Fica evidente que mulheres, ou melhor, que mulheres negras podem e devem ser o que quiserem, podem ser fortes, podem ser seguras de si, podem ser donas de suas próprias histórias com muita luta, amor e segurança!
É importante também ressaltar que o filme é baseado em histórias reais, de mulheres reais que fizeram história de verdade e quebraram muitos tabus no contexto histórico em que viveram com muita luta! São histórias de união, de amizade, de amor, de força, de garra e muito, muito poder!
Mary,
Katherine e Dorothy: Donas de si.
(Fonte da imagem: Dark Horizons)
(Fonte da imagem: Dark Horizons)
“Estrelas além do tempo” está indicado ao Oscar em três categorias: melhor filme, melhor atriz coadjuvante com Octavia Spencer (Dorothy) e melhor roteiro adaptado. Além da torcida, vale também uma pergunta final: Quantas mulheres como essas continuam escondidas sem que ninguém conheça suas histórias? Trabalharemos para que mais figuras como essas sejam descobertas e reconhecidas!
(Fonte da imagem: NASA apud Observer)
“Hidden
Figures” (“Estrelas além do tempo”) foi baseado no livro de mesmo nome da
autora Margot Lee Shetterly.
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017
Sobre a autora
Doutoranda e mestra em História Social
Licenciada e Bacharel em História
Vencedora do primeiro lugar do concurso Sílvio Romero de Monografias sobre Folclore e Cultura Popular (CNFCP/IPHAN)
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